segunda-feira, 29 de abril de 2019

P.E.R.N.A.S



Pernas


Pernas sinuosas no caminho,

Cruzam perigosamente meus olhos,



Linhas e curvas em tatoo,

Desviam de súbito meu sentido,



Vertigem me deixa sem chão,

O vento me leva no ar,

Suspenso me ponho a sonhar.


Marcos Sousa








sexta-feira, 26 de abril de 2019

T.R.I.B.U.T.O . A.O . P.O.E.T.A



Tributo ao Poeta: Lord Edgar

A poesia chegou em mim,
E me completou...


Bem aventurado seja menestrel do lirismo,
Artesão da palavra,

Que se fez em verso,
Revelando o mistério.


Bem aventurado seja,
Mensageiro da  emoção e do escárnio,
Rastreia sombras em versos,
Desvela sonhos ocultos.

Bardo errante, 

Chegou sem rompante, meio cambaleante.
Pacato e gentil, as vezes arredio,  

Sem níquel emergiu,
E mostrou o seu brio.

Madeixas ao vento, 
Grisalhas do tempo, 
Bastante sereno, 
Chegou o Nazareno.

Trouxe a boa nova,
Febril sentimento, 

Latência em palavras,
Mistério liberto,

Em forma de verso.

Do vazio se fez ideia,
Que agora reluz,

O princípio e o nexo.
Castro é quem conduz.


E agora, quem sou?
Meu batismo chegou,

Agradeço a Edgar.
Esse banho no mar.


Poesia é assim...
Arte que aprisiona,
Prisão que liberta,
Já não sou aridez,
O lirismo fluiu.


Aqui me despeço,
Sincero e grato,

Ao poeta um abraço,
Que é parte de mim.

_____________________
Ao poeta e amigo
Edgar Castro Nazareno

"o ataúde não deu em mim..."
Marcos Sousa






quarta-feira, 24 de abril de 2019

F.O.R.M.A. E C.O.N.T.E.Ú.D.O


Forma e Conteúdo

Mulheres, imãs e enigma em forma e conteúdo.

Pele, pescoço, cabelo, braço e nariz, sem mencionar o dorso dos pés.

Sabem o que são. 
Formas dispersam a real atenção. 

Huuummm... e o cheiro?
Muito envolvente!
Irresistível! Viagem no ar...

Bocas risíveis, dentes encantam, lábios flamejam, olhos convidam.

Sabem onde estão.
Não navegam em mundo flores.
Nadam contra a corrente,
Do machismo e da opressão.

Para além da aparência, são mulheres de sonhos, ocupam espaços, enfrentam algozes.

Sabem bem o que querem.
Respeito, igualdade, 
Lugar na história a faz ser mulher.

Assim se definem, 
No tempo presente, 
Negando o arcaico, 
Expelem o vulgar,
Sol a conquistar.

Forma e conteúdo,
Costela desfez, 
O verbo a refez,
Reificou sua vez.


Marcos Sousa




terça-feira, 23 de abril de 2019

T.R.Ê.S G.E.R.A.Ç.Õ.E.S




Três Gerações

Abro a janela.
Vento frio invade meu quarto, cortina revolta suspensa no ar.
Afora areia molhada, gotas de chuva desprendem no tempo.

Olhos procuram a imagem do tempo.
Dia e noite, pele, cabelo, ponteiros do tempo que insistem em passar.

Olhos perdidos no tempo, na areia da praia e no vento.
Águas calmas deitam no colo da areia, que a abraça e a envolve, gentil, num tempo perene que não vai passar.

Sozinhos na praia, três gerações do tempo, amálgama e síntese, memórias, histórias e afetos.
É fim de tarde. O sol, a areia e o vento;
É o tempo...

Sentados em bancos de areia os mais jovens, crianças enterram os pés e desenham no chão;
Tempo de sonho e aventura, vida sem pressa, coragem, sorriso e paixão.
É o tempo...

Adiante um casal lado a lado pousou,
Conversam na areia, um livro na mão, olhando o sol, que se põe.
Cabelos revoltos no vento, sorrisos e olhares de encantamento, a onda chegando, lavando os pés.
É o tempo...

Bem perto o relógio se mostra implacável, pele enrugada, passos lentos, três gerações de rebentos, nadando contra a corrente do tempo.
Outrora criança, amante e sonhos, agora retinas fatigadas, alvos cabelos revoltos.
É o tempo...    

Ah! Que tormento, sem alento.
Ponteiros que insistem em mudar.
Moldagem visível do tempo ar.
Certeza que a brisa e o vento, insistem moldar.

Marcos Sousa



domingo, 21 de abril de 2019

T.A.P.E.T.E E P.O.E.I.R.A





Tapete e Poeira


Pensa em algo que eu não gosto de fazer. Lavar tapetes e pano de chão.

Quando limpos estes não devem ser arrumados no mesmo lugar. Devem ficar separados. Não há nenhum sentido nisso. Assim aprendi e é quase uma mania a me dominar.

Quando sujos sim, podem ser misturados, de molho, em água e sabão, num caldo só, até a sujeira desapegar, e, depois de esfregar muito, fica estendido no sol e no ar.

Parece até discriminação. Não deixa de ser. Quando limpos ficam separados. Sim discriminação de tapetes e panos de chão, mas não como uma segregação do tipo “racial”.

Panos e tapetes não sabem que existem. Pessoas sim sabem. Ainda que não consigam definir com clareza quem são, de onde vem e pra onde vão.

Tapetes e panos possuem todos os dias a mesma missão: lidar com poeiras que caem no chão.

Impossível acabar com poeiras. 
Limpa um canto, suja o outro. Todos os dias existem. Dia e noite é precipitação.  E dão sentido aos tapetes e aos panos de chão.

Talvez por isso estes, se pensassem, saberiam responder “o que eu sou?”.

Diriam, se minha existência está ligada a “limpeza” do mundo, algo impossível pois, desde que o mundo é mundo, poeiras sempre existiram e logo, minha existência é em vão. Trágica conclusão.

O ser que existe - dito humano - ou que pelo menos pensa que existe, vive todo dia, pisando em tapetes e panos de chão, que guardam poeiras pra si, tudo em vão.

Eternas poeiras cósmicas, nunca findarão, sempre existirão. Será que são seres inanimados ou princípio da evolução escrachando com a criação?.

E por que se fez luz no princípio? Por que já existia poeira, muito densa, vastidão. 


Densa e perturbadora e seus fragmentos contínuos, se estendem até hoje pelos cantos da sala e no chão.

Revelado o sentido da existência do tapete e do pano de chão, seres inanimados, que quando limpos, não devem ser organizados no mesmo vão.

O ser que o pisa e limpa seus pés no tapete, por tempos ainda há de se perguntar “de onde vim?” e também resmungar até quando vão existir poeiras no chão.

Ser insano, se acha pensante e ignora a razão.



Marcos Sousa


* Da série de poemas "Inanimados Existenciais"


terça-feira, 16 de abril de 2019

A.R.O.M.A D.E C.A.F.É


Aroma de Café

Cheiro de café sinto no ar.
Ainda é cedo. chove lá fora...
De olhos fechados, ouço gotas de água caindo no chão.
O corpo ainda não acordou.
Aroma de café me leva longe,
Num tempo em que eu tinha minha mãe.

Era jovem, muito jovem. Não era o que hoje sou...
Não conhecia labuta e as agruras do mundo,
Rebentos ainda não tinha.

Nas manhãs de outro tempo,
Cheiro de café invadia meu quarto
Forte aroma despertava meus sentidos,
Num tempo em que eu só estudava.

Cedo, mãos de minha mãe já labutavam.
Meu quarto ao lado da cozinha tudo ouvia.
Café em aroma me invadia.
Água da torneira caindo,
Ruídos de vidros ecoam.

Um fino estampido,
Ruídos sonoro tilintam,
Aliança sagrada em atrito com louças, copos e outros metais mais.

Todos os dias...
Fui criado assim...
Sem perceber tudo que recebi.

Hoje, adulto, viajo no tempo, memória, passado e presente.
Saúdo um tempo que ainda há em mim.

Que cheiro bom!
 Me ponho de pé
Afasto a cortina
lhe dou meu bom dia.

O que hoje eu queria?
O que ouvi todo dia,
Sem ter muita alegria,
Um pouco mais eu queria...

Aroma de café e a doce palavra “bom dia”.
“__Acordou bem na hora. O café tá na mesa...”

Ainda é cedo...
Gotas de chuva desprendem no ar.
O corpo no tempo ainda quer viajar.
Num tempo de um tempo
Que nunca mais vai chegar.

Saudade tem nome.
Aroma no ar.
Ainda é cedo.
Não sei bem a hora,
Silêncio e pensar.
Marcos Sousa


P.É D.E M.E.S.A



Pé de Mesa

Hoje é domingo,
Aroma de café na minha cama.
Chuva fina cai lá fora,
Tempo de espreguiçar,
E um café pra tomar.

Na mesa sozinho estou.
Gota d’água ouço na pia,
Tilintar metal no ar.

Não há companhia, só o silêncio,
Mundo sem sentido.
Sozinhos, o que somos?
Pergunta no ar...

Não houve, bom dia!
Ou, como o senhor está?
Ouço apenas o silêncio.
Gotas e um tilintar.

Passarinhos ainda dormem.
Não é tempo de acordar.
Cada um tem o seu sonho,
Livre e soltos vão voar.

No quarto todos estão.
A mesa vazio restou,
Me encontro só com o tempo,
Tempo que não parou.


Risos e palavras bem ditas a mesa.
Histórias e estórias de rir e de chorar.
E o tempo persiste e teima em passar.

Querelas matinais a mesa,
Cadeiras preferidas,
Xícaras escolhidas.
E a disputa diária, oculta aos olhos, aos pés da mesa.


Cheguei  primeiro! diziam sempre.
Não é qualquer contenda.
Pés nos pés da mesa.

Pé de mesa é território em disputa.
Toda manhã.
Embaixo da mesa,
Pé de mesa, pé de querelas.

Igual ao beijo de mãe e ao beijo de mulher,
Beijo de despedida como amuleto da sorte
Que deixa marca vermelha no dorso da mão.

Pés de mesa e pés de moleque, moleca também.
Curvas concavas, perfeitas. 
Macio encaixe das palmas dos pés
Como massagem de mãe, sem pressa de acabar.

Eterna disputa que tempo levou.
A mesa sozinho,
Lembranças de um tempo que pra mim ficou.

Ah!
Mas, hoje é domingo.
Pé de mesa amarela.
Abri a janela que o tempo levou.

Marcos Sousa




E.N.C.O.N.T.R.O



Encontro


Casual, fortuito, ao acaso.
O encontro com a poesia.
Tropeço, acidental e imprevisível.
Água doce, luz, magia.

Não posso dizer que as palavras
Estavam perdidas em mim.
Talvez, melhor dizer que houve um desencontro.
No tempo, no espaço e na forma.

Palavras sempre estiveram comigo.
Companheira de caminhadas.
Em aventuras, angústia e solidão.
Parceira de sonhos e de reflexão.

Por vezes a uso de forma áspera.
Outras vezes de forma ardil.
Muitas vezes a uso como esperança
Em outros tempos com muita revolta
Gosto mesmo da sua forma gentil.

Assim resplandece a palavra.
Magnética, eletrizante e mágica.
Graciosa, de amor e sarcasmo.
Muitos são seus significados.

Mas eram em linhas de prosa.
Jamais desprezei essa forma.
Ela é parte de mim.
Sal, ar, palavras venosas.

Prezada seja a retórica!
Louvado seja o argumento!
Sagrado seja o diálogo!
Agora e em qualquer tempo.

Mas faltava o belo encontro: palavra, poesia e encanto.
Rejeita forma cristalizada, mais ainda sacralizada.
Poesia e sacralização lembra rima de profanação.
Num tempo de escuridão.

Vale palavras singelas. Sim!
Palavras de indignação. Também!
Vale mesmo é soltar a imaginação. Porque não!
No olho do furacão.

Palavra e poesia com fruição.
Com alegria, sem devoção, muito menos gratidão.
Onde se fez palavra, também se fez artesão.

Alimento e libido da alma
Fruto permitido do oitavo dia.
Maná se fez em poesia.
Lustra a alma de alegria.

Assim se fez este encontro,
De um jeito que bem lhe conto
Palavras com rima e sem rima
Agora o acaso é um tempo,
Lapida meu pensamento
Devir, existir e fluir.

Marcos Sousa
16/04/19




P.R.A N.Ã.O R.O.M.P.E.R N.O.S.S.A L.I.N.H.A




Pra não romper nossa linha (Epitáfio)


Deixo palavras escritas no tempo.
Deixo olhares, sorrisos e pensamentos ternos.
Deixo a boa e leve palavara te amo.
Deixo um afago, um cheiro, um abraço em prantos.
Te deixo...

Deixo a minha memória, pra não romper nossa linha.
Nos veremos em cada instante,
Minha vida em tua vida.
Sempre...

Fica contigo a intenção, de zelar sem aflição,
Palavras lindas no tempo, doce e singela como uma bela canção.
Fica um pedaço de mim,
Lembranças, palavras e risos.
Fico...

Carne da minha carne.
Sangue do meu sangue.
Corpo do meu corpo.
Memória da nossa história.
Os deixo...

Fica o mais importante,
O amor como gesto de encanto.
Hei de ficar em vocês,
No tempo, nos risos, nos filhos por vir.
Em prantos...

Caminho na areia branca,
Marcas deixo no chão,
Espuma branca d’água lavam meus pés,
Libertam o meu coração.

Sigo em direção de onde vim,
Levo o melhor que há em ti.
Lágrimas secam no tempo.
O tempo que eu já vivi.

Aqui me despeço sereno.
O vento me carrega manso.
Brisa leve, levo a luz,
Adeus,
Um sopro,
E o desencanto...

Do marido, pai, irmão, amigo e companheiro.
Marcos Sousa


S.E.X.T.A D.E L.Á.Z.A.R.O




Sexta de Lázaro


Lázaro, Lázaro, 
Oh Lázaro!
Acorda-te!
Levanta-te!
Andaaaa homem!


Arruma as mortalhas,
Te cobre com túnicas, homem,
Limpa o bálsamo da unção, 

Lá fora faz frio,
Teu corpo é só arrepio. Dá até calafrio!
Mais ainda em quem te viu,
De pé, em pele cor anil.


Lázaro, ooh Lázaro.
Sacode a poeira, homem.
Dá um tapa na cabeleira,
Vai pra rua, que hoje é sexta feira.


Marcos Sousa
Da série "Versos Profanos"




S.U.S.S.U.R.R.O.S N.O.T.U.R.N.O





Sussurros Noturno

Silêncio no escuro se põe a falar.

Sussurros noturnos ecoam no ar.

"__ É tarde..."

Desperto apreensivo silêncio no ar

Palavra direta me faz animar

__ Quer fazer amor?

O corpo estremece, suspiro no ar.

Um vôo no céu, prazer de sonhar.

Carícias, suspiro, desejo de amar.

Marcos Sousa


P.E.L.E



Pele

Cheiro de pele molhada me envolveu.

Prelúdio de amor meu desejo é só seu.

Lânguido andar logo apareceu.

Última gota de orvalho cedeu.

Cheiro de amor em perfume nasceu.

Néctar e ardor, corpo desfaleceu.

Olho pro lado. Lençol amassado, olhar e sorriso, meu eu é só teu.

Marcos Sousa



D.I.T.A.D.U.R.A N.U.N.C.A M.A.I.S.!




Ditadura nunca mais!

Violar a ação
Violar o sonho
Violar a alegria
Violar a humanidade.

Exercer domínio sobre o outro.

Subjugar, humilhar, desumanizar.
Aqui jaz um algoz de mim.

Jazz à utopia
Jaz a ditadura
Jazz à juventude

Fagulha,
Centelha...

Organizar,
Inquietar,
Encorajar,
Subverter,
Revoltar,
Indignar,
Resistir,
Enfrentar,
Desobedecer.
Sonhar,
Esperançar,

O temeroso fortalece o seu algoz.
Ditadura nunca mais!

Marcos Sousa



L.E.V.E.Z.A




Leveza


É tarde!

No vazio sinto sua presença.

Sensação de ouvir o Silêncio.

Tempo, vazio e espaço...

Cama vazia, palavra em silêncio.

É tempo de sonhos.

Passado e presente.

Ausência e distância. Presença vazia.

Ande logo. Tempo vem...

Presença, palavra, sorriso e leveza, chegou o meu bem.

Marcos Sousa


C.A.S.O R.I.T.A





Ensaio:
Caso Rita: relato de vivência em abuso sexual* 



Não sei ao certo quando tudo começou... Também tenho poucas lembranças dos momentos em que fui uma criança normal. Não me lembro direito do que mais gostava de brincar e fazer, não sei se um dia cheguei a brincar... Também não ficou na memória as coisas que eu fazia na escola. Estava sempre conhecendo colegas diferentes... Parece que a única coisa que eu fazia na escola era contar o tempo e esperar que ele passasse até chegar a hora de voltar para casa e tudo começar de novo. As vezes sentia vontade de não voltar mais pra casa, mas sempre lembrava que minha mãe falava pra ter cuidado com  gente estranha... 

Sentia uma sensação de angústia o tempo todo comigo, como se de repente alguém fosse segurar forte no meu ombro... só de pensar fico assustada, me dá arrepios... não gosto de pensar. Assim como não gosto das tardes e do escuro... Quando fico sozinha, pensando, é como se ele tivesse sempre perto, me olhando, daquele jeito...
Em casa e na rua poucas pessoas chamavam pelo meu nome. Minhas irmãs e minha mãe me chamavam pelo meu apelido, mas ele não! meu pai... sei lá se era isso mesmo, sempre me chamava pelo meu nome, Rita, só isso, sempre alto, como se estivesse com raiva de mim... 

Nunca entendi porque ele fazia isso ! Estava sempre sério comigo. Seu olhar era como se estivesse sempre me cercando e me falando para ter cuidado com o que falasse e com quem falasse. Seu olhar sempre me dizia para ficar calada. Não entendo como só eu via isso. Suas palavras me assustavam, seu silêncio me assustava mais ainda.  

Com minhas irmãs parecia mostrar-se sempre carinhoso, brincalhão. Era o que dava pra ver. Eu estudava de manhã, minhas irmãs à tarde. Lembro poucas vezes em que ele fez carinho de verdade em mim... não sei direito. Também fazia pouco carinho em minha mãe, era o que dava pra ver; eles pouco se mostravam juntos ...  

No começo achava que era só uma brincadeira. Foi isso que ele me disse. Por um tempo me senti especial, pois recebia carinho e atenção. Mas ele falou também que era um "segredinho nosso", que não era pra contar pra ninguém, e que se a mãe soubesse  poderia brigar muito comigo. Nesse dia fiquei preocupada e confusa.  Com medo, não disse nada... 

Eu pouco brincava em casa, sozinha ou com minhas irmãs, na rua nem pensar... Nunca estava com vontade de fazer nada. Minha mãe me chamava de "cabeça de vento". Eu estava sempre calada e pensativa. Me perguntava se minha mãe acreditaria em mim se lhe contasse. Não conseguia fazer nada direito.  Uma vez, lembro que minha irmã mais nova me perguntou se eu tinha algum segredinho que não podia contar pra ninguém. Fiquei assustada, preocupada, não entendi... Será que ela sabia alguma coisa de mim ?!  De noite chorei muito... 

Lembro que no começo tudo acontecia no fim de semana, sempre quando a gente ficava só. Durante a semana ficava um pouco aliviada quando via ele vestir aquela roupa e sair, acho que para o trabalho. Mas alguma coisa aconteceu e ele já não saia de manhã... Agora era a minha mãe quem saia para trabalhar e ele ficava com todas nós... Minha mãe, que já não me via quando estava em casa, agora passava o dia todo fora, as vezes passava até a noite fora... era o meu fim... contava o tempo até nossa mãe voltar. As horas demoravam muito a passar, ninguém vinha em casa e tudo o que acontecia no fim de semana, começava acontecer todos os dias... Sentia muito medo de ficar na minha própria casa, não sabia o que fazer, queria coragem para sair de casa... Pensava na minha mãe e nas minhas irmãs... sempre acreditava que se falasse alguma coisa, minha mãe brigaria comigo. Ela nunca entendia por que eu não gostava de ficar perto dele, preferia ficar sozinha. Estava sempre triste, pensativa ou irritada. Achava que se eu ficasse calada estava protegendo minha mãe, minhas irmãs, todo mundo, até ele... era tudo muito confuso pra mim. Como eu deixei isso acontecer comigo... vivia angustiada, achava que era melhor assim... 

 Agora via aqueles olhos em cima de mim o tempo todo. Não me olhava como se olha para uma filha, não me pegava, abraçava, tocava e beijava como uma filha... Era muito estranho, ficava muito inquieta. Como ninguém percebia ?!  Com o tempo as coisas foram aumentando. As vezes, enquanto deixava minhas irmãs na sala, me levava para o quarto, seu rosto ficava diferente, se transformava. Ele tirava minha roupa, me falava coisas... fazia aquelas coisas comigo, tudo... ficava sem roupa também, mexia muito comigo, me pegava pra fazer nele também. Ele não parava, tava sempre querendo de novo, suava muito, me machucava... Não conseguia fazer ele parar... Enquanto eu chorava ele gritava, daquele jeito... até se virar pro lado... Sentia sempre aquele cheiro... Ninguém via nada, pois o quarto sempre estava trancado. Enquanto ele dormia eu sentia dor e muito medo. Isso aconteceu muitas vezes. Minha mãe nunca soube... não sei o que faria comigo se soubesse. 

 Um dia ele disse que mataria minha mãe se eu falasse. Num outro, falou que seria melhor para minhas irmãs que não falasse... Nunca entendi como minha mãe não me via... estava a cada dia morrendo, as coisas perderam o sentido pra mim, não sentia prazer em nada, estava muito confusa, queria sair por ai... sei lá ! Talvez fosse melhor...

  Quando minha mãe trabalhava de dia, tudo acontecia as tardes, quando trabalhava as noites, era ai que tudo acontecia. Nunca gostei das tardes e noites... as vezes fico assustada nestes horários, não consigo dormir direito, sempre acordo assustada, sinto um aperto no peito, choro muito... 

 Num desses dias ele me fez sentir muita dor. Fiquei a noite inteira com dor, sentia muito frio... demorou muito para amanhecer, achei que ia morrer... neste dia sangrei muito, senti muito medo. Não parava de pensar nas minhas irmãs... no segredinho da minha irmã mais nova... Sentia dores na barriga, não conseguia mexer as pernas, tudo doía. Ele falou que não era pra eu dizer nada... nesse dia vi que ele ficou nervoso e muito preocupado. Por um momento me chamou de filha... Tudo parecia tão vazio. Sofri novamente... 

Ao chegar do trabalho de manhã, minha mãe, assustada com meu estado, me levou ao médico. Minha mãe não quis acreditar no que o médico lhe disse, veio logo confirmar comigo. Não queria acreditar... chorava muito, ficou sem controle, falava nas minhas irmãs... Ela não queria acreditar... e eu morria de novo.   Fiquei um tempo no hospital. Mais tarde fiquei sabendo que ele foi preso... Não sei o que fiz. Minha mãe vive chorando, saiu do trabalho. Não sei o que fiz...  

Agora estamos na casa da vovó, não consigo comer direito, meu sono é agitado, acordo assustada no meio da noite, vivo chorando, não consigo estudar. Minha mãe briga com minha irmã. Também a chama de "cabeça de vento" ... Não sei o que fiz.

Parece que agora ele está de volta na casa... Vejo seus olhos só de pensar...  É como se ele estivesse sempre atrás de mim. As vezes sinto vontade de não acordar mais, sei lá! Desaparecer ... fazer besteiras. Acho que seria melhor... Não consigo sonhar coisas boas, não vejo prazer nas coisas, não sei o que será de mim ! Minha mãe não conversa comigo... Sinto um aperto grande no peito... Como eu deixei tudo isso acontecer !? 




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Ritas, Renatas, Lucianas, Leonardos, Ruths, Cristianes, Alessandras, Andreas, Nonatos, Bárbaras.  Em cada dez casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes apenas um vem a tona e entra para os números de notificações oficiais. É a chamada ponta do iceberg .

 A grande maioria dos casos de abusos sexuais estão "submersos" no anonimato, na esperança por mais políticas públicas, responsabilidade familiar, compromisso comunitário, e, menos negligência, omissão, cumplicidade e indiferença da sociedade.  


Casos como o de Rita, acontecem em todos os lugares, principalmente dentro do seu próprio ambiente de moradia e estão a espera de sua atenção e proteção.   

É chegada a hora da esperança vencer o medo !

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* O Caso Rita: relato de vivência em abuso sexual é fictício e intenciona aproximar-se de um relato real de abuso sexual intra familiar. 

É um conto psicológico e pode ser usado na capacitação profissional e social para o enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, desde que citado sua fonte. 

O texto é de autoria do Sociólogo Marcos Sousa, produzido em abril de 2003. 

Este prestou serviço enquanto Educador durante um ano e seis meses na Fundação Papa João XXIII, durante a implantação do "Projeto Tamba-Tajá" (Programa Sentinela Belém) de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no município de Belém.