terça-feira, 16 de abril de 2019

C.A.S.O R.I.T.A





Ensaio:
Caso Rita: relato de vivência em abuso sexual* 



Não sei ao certo quando tudo começou... Também tenho poucas lembranças dos momentos em que fui uma criança normal. Não me lembro direito do que mais gostava de brincar e fazer, não sei se um dia cheguei a brincar... Também não ficou na memória as coisas que eu fazia na escola. Estava sempre conhecendo colegas diferentes... Parece que a única coisa que eu fazia na escola era contar o tempo e esperar que ele passasse até chegar a hora de voltar para casa e tudo começar de novo. As vezes sentia vontade de não voltar mais pra casa, mas sempre lembrava que minha mãe falava pra ter cuidado com  gente estranha... 

Sentia uma sensação de angústia o tempo todo comigo, como se de repente alguém fosse segurar forte no meu ombro... só de pensar fico assustada, me dá arrepios... não gosto de pensar. Assim como não gosto das tardes e do escuro... Quando fico sozinha, pensando, é como se ele tivesse sempre perto, me olhando, daquele jeito...
Em casa e na rua poucas pessoas chamavam pelo meu nome. Minhas irmãs e minha mãe me chamavam pelo meu apelido, mas ele não! meu pai... sei lá se era isso mesmo, sempre me chamava pelo meu nome, Rita, só isso, sempre alto, como se estivesse com raiva de mim... 

Nunca entendi porque ele fazia isso ! Estava sempre sério comigo. Seu olhar era como se estivesse sempre me cercando e me falando para ter cuidado com o que falasse e com quem falasse. Seu olhar sempre me dizia para ficar calada. Não entendo como só eu via isso. Suas palavras me assustavam, seu silêncio me assustava mais ainda.  

Com minhas irmãs parecia mostrar-se sempre carinhoso, brincalhão. Era o que dava pra ver. Eu estudava de manhã, minhas irmãs à tarde. Lembro poucas vezes em que ele fez carinho de verdade em mim... não sei direito. Também fazia pouco carinho em minha mãe, era o que dava pra ver; eles pouco se mostravam juntos ...  

No começo achava que era só uma brincadeira. Foi isso que ele me disse. Por um tempo me senti especial, pois recebia carinho e atenção. Mas ele falou também que era um "segredinho nosso", que não era pra contar pra ninguém, e que se a mãe soubesse  poderia brigar muito comigo. Nesse dia fiquei preocupada e confusa.  Com medo, não disse nada... 

Eu pouco brincava em casa, sozinha ou com minhas irmãs, na rua nem pensar... Nunca estava com vontade de fazer nada. Minha mãe me chamava de "cabeça de vento". Eu estava sempre calada e pensativa. Me perguntava se minha mãe acreditaria em mim se lhe contasse. Não conseguia fazer nada direito.  Uma vez, lembro que minha irmã mais nova me perguntou se eu tinha algum segredinho que não podia contar pra ninguém. Fiquei assustada, preocupada, não entendi... Será que ela sabia alguma coisa de mim ?!  De noite chorei muito... 

Lembro que no começo tudo acontecia no fim de semana, sempre quando a gente ficava só. Durante a semana ficava um pouco aliviada quando via ele vestir aquela roupa e sair, acho que para o trabalho. Mas alguma coisa aconteceu e ele já não saia de manhã... Agora era a minha mãe quem saia para trabalhar e ele ficava com todas nós... Minha mãe, que já não me via quando estava em casa, agora passava o dia todo fora, as vezes passava até a noite fora... era o meu fim... contava o tempo até nossa mãe voltar. As horas demoravam muito a passar, ninguém vinha em casa e tudo o que acontecia no fim de semana, começava acontecer todos os dias... Sentia muito medo de ficar na minha própria casa, não sabia o que fazer, queria coragem para sair de casa... Pensava na minha mãe e nas minhas irmãs... sempre acreditava que se falasse alguma coisa, minha mãe brigaria comigo. Ela nunca entendia por que eu não gostava de ficar perto dele, preferia ficar sozinha. Estava sempre triste, pensativa ou irritada. Achava que se eu ficasse calada estava protegendo minha mãe, minhas irmãs, todo mundo, até ele... era tudo muito confuso pra mim. Como eu deixei isso acontecer comigo... vivia angustiada, achava que era melhor assim... 

 Agora via aqueles olhos em cima de mim o tempo todo. Não me olhava como se olha para uma filha, não me pegava, abraçava, tocava e beijava como uma filha... Era muito estranho, ficava muito inquieta. Como ninguém percebia ?!  Com o tempo as coisas foram aumentando. As vezes, enquanto deixava minhas irmãs na sala, me levava para o quarto, seu rosto ficava diferente, se transformava. Ele tirava minha roupa, me falava coisas... fazia aquelas coisas comigo, tudo... ficava sem roupa também, mexia muito comigo, me pegava pra fazer nele também. Ele não parava, tava sempre querendo de novo, suava muito, me machucava... Não conseguia fazer ele parar... Enquanto eu chorava ele gritava, daquele jeito... até se virar pro lado... Sentia sempre aquele cheiro... Ninguém via nada, pois o quarto sempre estava trancado. Enquanto ele dormia eu sentia dor e muito medo. Isso aconteceu muitas vezes. Minha mãe nunca soube... não sei o que faria comigo se soubesse. 

 Um dia ele disse que mataria minha mãe se eu falasse. Num outro, falou que seria melhor para minhas irmãs que não falasse... Nunca entendi como minha mãe não me via... estava a cada dia morrendo, as coisas perderam o sentido pra mim, não sentia prazer em nada, estava muito confusa, queria sair por ai... sei lá ! Talvez fosse melhor...

  Quando minha mãe trabalhava de dia, tudo acontecia as tardes, quando trabalhava as noites, era ai que tudo acontecia. Nunca gostei das tardes e noites... as vezes fico assustada nestes horários, não consigo dormir direito, sempre acordo assustada, sinto um aperto no peito, choro muito... 

 Num desses dias ele me fez sentir muita dor. Fiquei a noite inteira com dor, sentia muito frio... demorou muito para amanhecer, achei que ia morrer... neste dia sangrei muito, senti muito medo. Não parava de pensar nas minhas irmãs... no segredinho da minha irmã mais nova... Sentia dores na barriga, não conseguia mexer as pernas, tudo doía. Ele falou que não era pra eu dizer nada... nesse dia vi que ele ficou nervoso e muito preocupado. Por um momento me chamou de filha... Tudo parecia tão vazio. Sofri novamente... 

Ao chegar do trabalho de manhã, minha mãe, assustada com meu estado, me levou ao médico. Minha mãe não quis acreditar no que o médico lhe disse, veio logo confirmar comigo. Não queria acreditar... chorava muito, ficou sem controle, falava nas minhas irmãs... Ela não queria acreditar... e eu morria de novo.   Fiquei um tempo no hospital. Mais tarde fiquei sabendo que ele foi preso... Não sei o que fiz. Minha mãe vive chorando, saiu do trabalho. Não sei o que fiz...  

Agora estamos na casa da vovó, não consigo comer direito, meu sono é agitado, acordo assustada no meio da noite, vivo chorando, não consigo estudar. Minha mãe briga com minha irmã. Também a chama de "cabeça de vento" ... Não sei o que fiz.

Parece que agora ele está de volta na casa... Vejo seus olhos só de pensar...  É como se ele estivesse sempre atrás de mim. As vezes sinto vontade de não acordar mais, sei lá! Desaparecer ... fazer besteiras. Acho que seria melhor... Não consigo sonhar coisas boas, não vejo prazer nas coisas, não sei o que será de mim ! Minha mãe não conversa comigo... Sinto um aperto grande no peito... Como eu deixei tudo isso acontecer !? 




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Ritas, Renatas, Lucianas, Leonardos, Ruths, Cristianes, Alessandras, Andreas, Nonatos, Bárbaras.  Em cada dez casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes apenas um vem a tona e entra para os números de notificações oficiais. É a chamada ponta do iceberg .

 A grande maioria dos casos de abusos sexuais estão "submersos" no anonimato, na esperança por mais políticas públicas, responsabilidade familiar, compromisso comunitário, e, menos negligência, omissão, cumplicidade e indiferença da sociedade.  


Casos como o de Rita, acontecem em todos os lugares, principalmente dentro do seu próprio ambiente de moradia e estão a espera de sua atenção e proteção.   

É chegada a hora da esperança vencer o medo !

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* O Caso Rita: relato de vivência em abuso sexual é fictício e intenciona aproximar-se de um relato real de abuso sexual intra familiar. 

É um conto psicológico e pode ser usado na capacitação profissional e social para o enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, desde que citado sua fonte. 

O texto é de autoria do Sociólogo Marcos Sousa, produzido em abril de 2003. 

Este prestou serviço enquanto Educador durante um ano e seis meses na Fundação Papa João XXIII, durante a implantação do "Projeto Tamba-Tajá" (Programa Sentinela Belém) de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no município de Belém.
  


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